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Porcelain2Doll
— O Gato Pardo
Published:
2007-10-10 02:26:22 +0000 UTC
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Description
Malditos dias de inverno, eles deixam meu trabalho mais difícil de ser feito e mais deprimente ao ser feito.
Morando no lugar que moro, um chalé singelo de cinco cômodos, confortável, no meio da floresta, o frio se abate sobre minha pequena morada de tal forma que só me resta cobrir-me de mantas e sentar-me em frente à minha querida máquina de escrever para digitar palavras tristes e cansadas.
Fábulas, contos, estórias, todas movidas à tristeza da solidão.
A vida poderia ser uma longa primavera, não acha? Como aquela que passei junto do querido que amei.
Agora a neve bate em minhas janelas e portas geladas convidando-me para um passeio sem volta, como diriam os mais sensatos.
“Acho que irei de encontro à neve.”
Levantei-me de minha escrivaninha, largando a máquina de escrever e as mantas pelo chão, peguei um sobretudo e enrolei-me nele. Calcei minhas botas e saí para mais uma de minhas insanas aventuras em busca de inspiração.
Andando pelas minhas próprias trilhas, observando os flocos de neve cair. Alguns dizem que não há dois flocos de neve perfeitamente iguais, e acho que estão certos, apenas um segundo para mudar tudo e todos. Um segundo, um dia, digam como quiser, para quebrar um coração em muitos pedaços e vê-lo sangrar para nunca mais ser o mesmo.
Numa das trilhas mais íntimas da floresta, parei por uns instantes, sentando-me num tronco morto de uma árvore.
Ouvi um som diferente do habitual, um miado, baixo, tristonho. Olhei atentamente para a direção do miado e vi, entre as folhagens, um gato pardo.
Gatos pardos são mais interessantes que os negros, acho eu, em seus nomes há um toque de sensualidade fora do comum, eles me levam a escrever alucinadamente.
Curioso, ele me olhou, meio medroso ele se aproximou, deveria imaginar que, sendo eu boa ou má, ele não teria nada mais a perder. Ronronou o mais alto que pode, tentando demonstrar um afeto que não sentia por mim, e se esfregou mansamente em minhas pernas magras.
Peguei o bichano no colo, ele já era um adulto, era magro e alaranjado, tinha os olhos mais azuis que já vi em toda minha vida. Eu levei-o para meu chalé e dei-lhe comida.
Ele se apegou a mim e eu a ele.
Era saltitante, alegre, mas a neve trazia tristeza a seu olhar. Ele a observava de uma forma diferente do normal, às vezes ele parava em frente à minha janela e ficava olhando a neve cair por muito tempo.
Pela amargura que ele sentia na neve, dei-lhe o nome de Yoku, que significa “aquecer-se ao sol”... Acho que combina com meu solitário gatinho, pobre gatinho.
Pela manhã de um desses dias de inverno um pouco mais cálidos, eu notei, intrigada, a ânsia com a qual ele se esgueirava pela casa à procura de uma brecha de sol. E, quando via que não podia alcançá-la, ele desistia, se deitando com o coraçãozinho felino pesado.
Isso acabou me dando uma inspiração para um conto. Sentei-me junto de minha máquina de escrever, e comecei a digitar. Yoku se juntou a mim, deitando no meu colo entre as minhas mantas, a maquininha do rom-rom em seu peito funcionando, esquentando meu colo e o meu vazio chamado alma.
“Não tenho ninguém como você há tantos anos, Yoku.”
E acariciei suas bochechas. Ele esticou o pescoço e ergueu os bigodes com orgulho de sua própria existência.
O Gato pardo
Os dois andavam lado a lado pelo bosque, amigos de infância, unidos por laços familiares e amorosos intermináveis. Dois garotos, sim, dois garotos apaixonados um pela presença e vida do outro.
Amantes inseparáveis até onde a vida pudesse deixar, até onde o “para sempre” que o mais atrevido sussurrava no ouvido do outro pudesse durar.
As mãos entrelaçadas, o olhar feliz. Eles se sentaram no chão verdejante ainda molhado de orvalho, e viram o sol nascer naquele último dia de outono. No dia seguinte já seria inverno e o tempo dizia isso por si só.
Atrevidamente, ele acariciou os cabelos loiros do amigo, puxou, beijou-lhe a face, o outro corou. “Era um menino inocente,”, ele pensava “apenas um menino inocente.”. Ele não iria fazer muito mais que aquilo, não queria ferir o coração de seu querido loiro.
Uma jovem observava os dois, os olhos se movimentavam nervosos e o coração batia movido a um rancor e ciúmes inesgotáveis.
“Ele me deixou para estar junto desse loiro maldito?!”, ela perguntava para si mesma.
Infelizmente aquela jovem era cruel demais, e sabia demais. Todo dia e toda noite ela amaldiçoava o loiro, desejando-lhe a morte. Mas Deus é misericordioso onde pode ser e, ao invés da morte, Deus conseguiu fazer com que o loiro apenas se transformasse em um gato.
E aquilo ocorreu naquele momento mesmo, no nascer do sol do último dia de outono. O loiro caiu inconsciente no colo do amigo.
A garota se controlou para não urrar de felicidade, e o amigo apenas conseguia sacudir o outro.
E, então, ele virou um gato.
“Gato pardo?”, o garoto se perguntou franzindo o cenho.
“Por que virastes um gatinho pardo?”
Ele baixou os olhos e ficou olhando o gatinho pardo acordar vagarosamente em seu colo. O gato o olhou e se encolheu com medo.
“Não te lembras mais de mim?”
Ele acariciou o bichano, este ronronou.
E os dias se passaram assim, carícias calmas e barulhinhos doces. O gato pardo não se lembrava de nada, mas ainda sentia amor por quem, agora, era seu dono. Entretanto aquele felino tinha medo de uma coisa, algo que caia devagar e sereno, a neve.
Aquilo parecia recordar-lhe o último dia de outono e o entristecia, pois ele nunca mais poderia ser quem era e amar de verdade aquele rapaz.
Um dia, já no final do inverno, alguém bateu na porta e o garoto foi atendê-la, todavia, por mais que chamasse por alguém, ninguém respondia. Deu de ombros e voltou para seu quarto, chamou por seu gatinho pardo, mas ele não vinha.
Ele chamou de novo.
Nada.
Ele procurou em seu quarto.
Nada.
Na sala.
Nada.
E em toda a casa. Mas nada de seu gatinho pardo aparecer.
É que ele, agora, estava preso dentro de uma sacola de pano, sendo carregado pela jovem.
E ela o levava para o meio de uma floresta, o deixava lá, sozinho, e voltava. Aquela garota fazia isto porque, mesmo tendo virado um gato, era para o loiro que o seu amado mais dava atenção. Ela não poderia permitir aquilo, aquilo era uma prova de amor terrivelmente forte.
Ainda dentro da sacola, o gatinho miava desesperado. Quando finalmente conseguiu sair, se viu perdido, na floresta, a neve cobrindo todo o chão, caindo calmamente.
Ele se encolheu num canto, com medo da neve.
E ficou lá esperando pelo seu dono amado.
Enquanto isso o jovem estava em seu quarto esperando pelo seu Gato pardo.
Ao terminar minha mais nova estória, coçava os olhos sentindo que Morfeu estava prestes a passar por mim.
Yoku já cochilava em meu colo.
Olhei através da janela do outro lado de minha sala, a janela que fica ao lado de minha estante recheada de livros, e vi um garoto de cabelos negros chamando por alguém.
Ele baixou a cabeça e suspirou, tinha os olhos marejados. Deu meia volta e foi embora para nunca mais.
Quando realmente abri meus olhos, constatei que tinha cochilado junto de minha mesa de trabalho.
Yoku já não jazia mais em meu colo, ele estava junto da janela ao lado da estante observando a neve cair, arranhando a janela com suas patinhas acolchoadas de gato, miando daquele jeito infeliz e gemido que gatos miam.
Levantei-me e parei ao seu lado, observando a paisagem com ele.
Ele parou de miar, observou-me e se esfregou carinhosamente em mim.
Não havia mais aquele vago sentimento em seus olhos, havia sumido, havia sido esquecido novamente. Como o loiro que havia esquecido de seu amado ao se tornar o Gato pardo, ele só ronronava e vivia superficialmente, até encontrar a neve.
“Mas que imaginação a minha!”, pensei.
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